O que é ser analista? A formação passa pela própria travessia
Por que a formação psicanalítica começa pela experiência do próprio inconsciente?
Em um cenário onde cursos rápidos e formações técnicas proliferam, é fundamental recordar um princípio estruturante da psicanálise: a formação do analista passa por uma experiência analítica que o transforme como sujeito. Antes de ser alguém que escuta, o analista foi alguém que se permitiu ser escutado — em profundidade.
Jacques Lacan afirmava que um analista é aquele que “atravessou o próprio fantasma”. Esse atravessamento não é uma conquista teórica, mas vivida na carne da própria história. O analista é alguém que se reposicionou frente aos seus próprios impasses inconscientes, o que lhe confere uma escuta menos capturada por certezas, mais sensível ao que escapa, ao que falha, ao que insiste sem ser dito.
A escuta que não se aprende em livros
Na psicanálise, o cenário clínico se constitui muito mais na linguagem do que na mobília do consultório. O setting, nesse campo, é simbólico. Ele se constrói na relação, nos silêncios, nas repetições e nas dissonâncias da fala do analisando. E a escuta do analista não se restringe ao conteúdo manifesto — ela se orienta pelas frestas, pelas reticências, pelas rachaduras do discurso.
Mas há um ponto essencial: o analista é alguém que opera uma transformação da linguagem comunicativa do analisando em uma linguagem evocativa. Em vez de simplesmente comunicar ideias, fatos ou lembranças, o trabalho analítico visa evocar sentidos ocultos, não ditos, latentes no discurso. A linguagem, assim, se torna via de acesso ao inconsciente — não para explicá-lo, mas para convocá-lo a emergir.
Essa linguagem evocativa ressoa. Uma palavra, um gesto, até mesmo um silêncio interpretativo, pode agir como uma pedra lançada num lago. O impacto nem sempre é imediato, mas as reverberações se fazem sentir. Às vezes, muito tempo depois, o analisando retorna àquele momento com novas associações, sonhos ou transformações que só então se revelam como efeitos daquela escuta.
A clínica como espaço de ressonância
Há algo profundamente silencioso no trabalho analítico. Muitas vezes, transformações acontecem sem terem sido nomeadas diretamente. Um analisando, por exemplo, pode se dar conta de que certa dor — antes central — simplesmente esvaneceu. E isso pode ter acontecido não porque se falou muito sobre ela, mas porque foi possível escutar e tocar representações ligadas a ela por vias indiretas, inconscientes.
Essa delicadeza do gesto interpretativo só é possível porque o analista passou ele mesmo por uma experiência na qual também foi confrontado com seus enigmas, suas fantasias, seus limites. É essa vivência que torna sua escuta uma escuta distinta — não genérica, mas marcada pela experiência de já ter estado do outro lado da relação.
Formação: do saber ao encontro
É nesse ponto que se entende por que a formação psicanalítica não se faz apenas por leituras e cursos. Eles são importantes, sim. Mas insuficientes. O que autoriza o analista a ocupar esse lugar é uma experiência que o desloque, que o desloque de si. Uma experiência que o desaloje das certezas e o aproxime da escuta — não como técnica, mas como posição ética.
Como dizia Lacan, o analista se autoriza “por si mesmo e por alguns outros”. Esse “por si mesmo”, entretanto, é sempre efeito de um percurso — um percurso que começa pelo confronto com o próprio sofrimento e se estende na sustentação de um espaço onde o outro possa também se transformar.
Amar com coragem
Freud dizia que o fruto de uma boa análise é tornar o sujeito capaz de amar e trabalhar. A diferença está em que ser amado é o desejo do neurótico. Já ser capaz de amar é uma conquista. Amar exige coragem, pois implica exposição, entrega, risco. E quem ama com coragem é menos manipulável, menos suscetível à chantagem afetiva.
Essa é, talvez, uma das maiores contribuições da psicanálise: permitir que se atravesse o medo — o medo de perder, de falhar, de não ser suficiente — e se alcance uma posição mais livre diante da vida. O analista, ao ter vivido esse caminho, sustenta com o outro a possibilidade de também percorrê-lo.
Conclusão
A formação do analista é, antes de tudo, um processo de deslocamento subjetivo. Um percurso que atravessa o próprio inconsciente e que permite, com isso, escutar o outro com real abertura. Porque só quem já se deixou afetar profundamente pela experiência de ser escutado pode oferecer ao outro um espaço de verdadeira escuta — onde algo de novo possa, de fato, emergir.
Veja a interpretação do prof. Luís Henrique M. Novaes sobre este tópico: